Mercado aguarda ata da reunião para entender as motivações da entidade, mas revogação da Deliberação 896 representa mudança significativa na regulação desse mercado, segundo especialistas

A Comissão de Valores Mobiliários CVM divulgou nesta quarta-feira (26) a decisão de revogar a Deliberação 896, envolvendo o Mercado Bitcoin – MB, a respeito da oferta de serviço de intermediação de contratos de investimento coletivo no Brasil. Embora positivo, especialmente para a casa, a história traz à tona novamente a discussão sobre os requisitos utilizados para enquadrar ativos digitais como valores mobiliários e a possível necessidade de uma reformulação nos parâmetros da autarquia. Os motivos da decisão ainda não foram divulgados, mas especialistas acreditam que abre precedente para outras casas cripto acompanharem o tema mais de perto.
No início de março, no dia 11, a CVM emitiu a Deliberação 896, com a chamada Stop Order, determinado que Mercado Bitcoin Serviços Digitais Ltda., bem como todos os seus sócios, responsáveis, administradores e prepostos, suspendessem ofertas de serviço de intermediação de contratos de investimento coletivo no Brasil, sob a cominação de multa diária.
“Ela constatou que o MB vinha intermediando em seu site oportunidades de investimentos em ativos digitais, ou seja, tokens, lastreados em fluxos financeiros oriundos de direitos creditórios, cedidos por fundos de investimento em direitos creditórios não padronizados e utilizando-se, portanto, ao apelo público para a celebração de contratos que se enquadrariam no conceito de valor mobiliário, nos termos do inciso 9º, artigo 2º, da Lei de Valores Mobiliários – Lei n.º 6385, de 1976”, explica Astrid Rocha, sócia do Berardo Advogados.
O Inciso 9º, que deriva do conceito do Howey Test, diz que são valores mobiliários sujeitos ao regime da lei, quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujo rendimento advém do esforço de empreendedor ou de terceiros. Os três principais elementos que um contrato de investimento coletivo precisa ter para ser enquadrado como valor mobiliário incluem envolver uma oferta pública de valores mobiliários, ser realizado com a expectativa de remuneração advindo do esforço de terceiros e não se enquadrar nos demais incisos.
“Ou seja, se um token é vendido com uma promessa de rentabilidade futura, baseada na atividade de uma empresa ou de uma pessoa, por exemplo, como em tokens lastreados em direitos creditórios, renda de imóveis, projetos agrícolas, etc., ele pode ser considerado um valor mobiliário”, aponta Astrid.
Regulamentação atual e os tokens do MB
Recapitulando a história da regulação desses ativos, em 2023 a CVM emitiu um ofício circular que estabelecia quais tokens poderiam ser considerados como valores mobiliários, sendo eles os tokens de recebíveis e os tokens de renda fixa. “Nesse sentido, o posicionamento da CVM, era que se os tokens se caracterizassem como valores mobiliários, logo, quem está oferecendo esses tokens precisam estar registrados como intermediários de ofertas de valores mobiliários”, esclarece Gustavo Rabello , sócio de mercado de capitais do SouzaOkawa.
No caso do Mercado Bitcoin – MB, os tokens em questão estavam lastreados em direitos creditórios de cotas de consórcio que eram cedidos por Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDCs), ou seja, os investidores compravam os tokens que representavam uma pequena fração desses direitos, esperando receber rendimentos conforme os créditos desses consórcios fossem pagos, conta Rabello. Dito isso, à época, a autarquia entendeu que o MB não possuía autorização para atuar como intermediário de ofertas de valores mobiliários e emitiu a Stop Order.
Posteriormente, a casa cripto entrou com um recurso da decisão, que culminou na recente revogação, ocorrida na reunião do colegiado nesta terça (25). “Isso significa que a autarquia reconheceu a conformidade dos esclarecimentos e documentos apresentados. As 11 ofertas citadas na decisão anterior já estavam encerradas e permanecem inativas, inclusive no mercado secundário”, disse o MB em resposta à Capital Aberto, sem mencionar quais os recursos apresentados. “Recorremos da decisão por termos convicção de que seguimos todas as regras e os compromissos com o regulador e as melhores práticas de transparência e diligência no desenvolvimento e na oferta desses ativos”, contou o MB , em posicionamento, apontando que reconhece o compromisso técnico da CVM em revogar, por unanimidade, a stop order relacionada a 11 ofertas de tokens da plataforma.
Sem maiores explicações, por ora, a CVM revogou a deliberação inicial que acusava o MB de estar conduzindo ofertas irregulares. O que se pode presumir, segundo Rabello, do SouzaOkawa, é que a autarquia tomou essa decisão por entender que não houve uma oferta irregular de valores mobiliários ou que, de fato, o MB tem as respectivas autorizações para negociar esses tokens lastreados em cotas de consórcio.
“A CVM pode ter entendido que a autorização que o Mercado Bitcoin possui, em algumas áreas da CVM, poderia cobrir a oferta desses respectivos tokens. Tem dois caminhos, ou a entidade entendeu que os tokens não são considerados valores mobiliários ou considerou que são suficientes os argumentos do MB, no sentido de que possui uma autorização, seja por meio de alguma licença específica ou de uma consulta formal enviada no passado à CVM que talvez não tenha sido levada em consideração para a abertura desta deliberação.”
De toda maneira, a revogação da deliberação em questão representa uma mudança significativa na regulação do mercado de ativos digitais no Brasil, segundo Mariella Rocha , advogada e Head societário do Fonseca Brasil . “Ela traz consigo algumas questões importantes, já que gera incertezas no mercado sobre a posição atual da CVM, que pode ser interpretada como uma flexibilização, levando a práticas que ela pretende evitar”, opina a advogada.
Para a advogada do Fonseca Brasil, a CVM precisa fornecer orientações claras sobre os critérios que levaram à revogação para que o mercado não fique sem diretrizes precisas sobre quais atividades são permitidas ou não, prejudicando a confiança dos investidores. Por fim, Mariella pondera que essa mudança de posicionamento pode ser interpretada como a necessidade de se ter uma abordagem mais flexível da CVM, que, ao mesmo tempo, proteja o investidor e garanta a integridade do mercado, mas tendo em conta as novidades tecnológicas.
Procurada pela reportagem, a CVM informou que os votos proferidos pelo colegiado e o extrato da ata da reunião, para entender melhor quais motivos levaram à revogação, devem ser divulgados em breve. Este detalhamento deve fornecer pistas ao mercado sobre a posição da entidade.
Em 2024, saiu a decisão de um caso similar, em relação aos tokens da Dynasty , o que gerou muita controvérsia no mercado durante seus dois anos de discussão. Desta vez, relacionada a uma das maiores casas de cripto no país, a decisão também parece abrir precedentes para a discussão sobre as decisões envolvendo os tokens. “Tudo indica que isso abre precedentes. A CVM tem focado bastante nesse setor de tokens e criptoativos. Indica uma maior necessidade, das casas que fazem esse tipo de negociação de contratos coletivos, de um investimento em governança, em aderência à regulamentação da CVM, ter todas as autorizações necessárias”, comenta o sócio do SouzaOkawa.
O advogado ressalta que é importante, sempre que houver dúvida, fazer uma consulta formal para que a CVM formalize o entendimento dela. “Entendo que todas as casas que oferecem esse tipo de produto devem buscar entender o que houve e, caso não tenham alguma licença, para não correr um risco de questionamento, ir atrás da respectiva autorização”, complementa.
Essa é uma discussão em andamento e, como algo novo, especialmente no mercado de capitais brasileiro, tem algumas nuances que ainda estão sendo entendidas. “O voto e a ata completa da reunião do colegiado do dia 25, que suspendeu essa deliberação, ainda não foram divulgados. No entanto, sabe-se que a decisão foi tomada após a apresentação de recurso pelo mercado de Bitcoin”, lembra Astrid, do Berardo Advogados. “Ou seja, muito embora ainda não esteja claro qual foi exatamente o argumento que a autarquia considerou para que os tokens, neste caso, não fossem enquadrados como valor mobiliário, o que será divulgado oportunamente, vai ser muito importante para entendermos quais nuances são utilizadas na consideração ou não de valores mobiliários de tokens e criptoativos.”

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