Implementar mudanças de rumo é bem mais fácil nos EUA do que no Brasil, e isso sempre fez parte do pacto democrático por lá
Não é surpresa que, dentre as propostas de Donald Trump em seu novo mandato como presidente dos Estados Unidos, estejam incluídas medidas de desregulamentação dos mercados financeiros e de capitais. Historicamente, a regulação dos mercados nos EUA sofre de um efeito sanfona. Governos republicanos tendem a desregulamentar, enquanto governos do Partido Democrata tendem a apertar a regulação.
Implementar mudanças de rumo é bem mais fácil nos EUA do que no Brasil, e isso sempre fez parte do pacto democrático por lá. As agências que regulam os mercados são normalmente comandadas por um colegiado bipartidário, cabendo ao presidente da República que assume indicar o membro que garante a maioria ao partido no poder.
Talvez até agora isso fosse menos perceptível, e não apenas pelo tom estridente de Trump. São raros na história americana os casos em que um presidente não se reelegeu, e ainda mais raro que uma reeleição não tenha ocorrido por duas vezes seguidas (a última vez foi no século XIX). Só que, desta vez, ela veio acompanhada de uma inédita alternância de partidos no poder, com domínio das duas casas do Congresso pelo vitorioso.
Mas a verdade é que, com exceção do banco central (Federal Reserve), responsável pela política monetária, um novo presidente dos EUA tem o poder de nomear imediatamente a maioria dos dirigentes dos órgãos reguladores da atividade econômica. Isso se aplica à Securities and Exchange Commission (SEC, a Comissão de Valores Mobiliários americana), à Commodity Futures Trading Commission (CFTC, que regula, entre outros, o mercado de derivativos), à Federal Trade Commission (FTC, que regula a concorrência e a defesa do consumidor), e ao Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC), que supervisiona os depósitos bancários e, se necessário, liquida os bancos, além de garantir parcialmente os depósitos.
Já no Brasil, por conta de leis de iniciativa do presidente Fernando Henrique Cardoso, têm mandato estável os dirigentes da CVM, do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e das agências reguladoras (como a ANP, do petróleo, a Anatel, de telecomunicações, e a Aneel, de energia elétrica). E o mesmo ocorre, desde 2021 (governo Bolsonaro), com o Banco Central do Brasil, que não apenas é o responsável pela política monetária como supervisiona os bancos e os liquida – quem garante parcialmente os depósitos entre nós é uma entidade privada, o Fundo Garantidor de Créditos (FGC), financiado pelas instituições financeiras.
Trump não perdeu tempo ao começar a cumprir suas promessas de campanha em ralação aos mercados, como a de reduzir drasticamente a regulação sobre criptomoedas e redes sociais. Ao indicar Andrew Fergusson para dirigir a FTC, afirmou que ele “tem um histórico comprovado de enfrentar a censura da Big Tech e proteger a liberdade de expressão em nosso grande país”. A indicada para a CFTC, por sua vez, já afirmava, em 2023, que era preciso “recuperar o atraso” em relação a jurisdições amigáveis às criptomoedas. E enquanto o futuro presidente da SEC, Paul Atkins (antigo membro do colegiado entre 2002 e 2008), não assume o cargo, o interino indicado por Trump já criou uma “força-tarefa de criptomoedas dedicada ao desenvolvimento de uma estrutura regulatória abrangente e clara para criptoativos”.
A declaração mais detalhada veio de Travis Hill, indicado interinamente para o comando do FDIC e um dos postulantes ao cargo. Em uma longa lista de propósitos, em um tom pouco comum a reguladores bancários, prometeu regras que “promovam uma economia vibrante e em crescimento”, “uma abordagem mais aberta para inovação e adoção de tecnologia”, incluindo “parcerias de fintech e ativos digitais e tokenização”, acelerar a análise de fusões de bancos, e manter a atuação do FDIC dentro de seus mandatos, parando “de colorir fora das linhas”.
Com essas propostas e um Congresso favorável, Trump tem tudo para colocar seus planos rapidamente em prática, mesmo em um país em que parte das normas que regulam o mercado de capitais é fruto de autorregulação, notadamente pela Finra (Financial Industry Regulatory Authority), que tem se notabilizado pelo combate à lavagem de dinheiro, dificultada pelas transações com criptoativos.
Tudo indica que teremos um momento de maior liberdade para os agentes que atuam no maior mercado financeiro e de capitais do mundo, com inevitável reflexo nos mercados dos demais países. Mas isso não quer dizer que um novo movimento em sanfona da regulação esteja afastado por todo o mandato de Trump. Afinal, embora os efeitos de medidas regulatórias tendam a se produzir ao longo do tempo, e os benefícios sejam colhidos, ou a conta paga, apenas no próximo governo, há sempre o risco de uma crise acelerar as coisas e provocar uma guinada.
Fonte: https://valor.globo.com/financas/coluna/trump-e-a-regulacao-do-mercado.ghtml