Veículo avança como alternativa para empresas captarem recursos no país
Por Fernanda Guimarães
Os fundos de investimentos em direitos creditórios – os FIDCs – deram um salto em
volume ao longo do último ano, ocupando um espaço maior na cessão de crédito no
país. O patrimônio líquido cresceu quase R$ 200 bilhões nos últimos 12 meses,
chegando a R$ 561,5 bilhões em setembro, segundo dados da Associação Brasileira de
Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima)
Para agentes desse mercado, o potencial de crescimento será provado com a chegada
de novos investidores, como pessoas físicas e estrangeiros, visto que as cotas de FIDCs
ainda são concentradas nos investidores institucionais.
Na prática, toda empresa que tem valores a receber de clientes pode captar recursos
FIDC. Um exemplo comum é o varejista que vende produtos a prazo. Para receber
todo o valor de forma antecipada, essa empresa empacota os créditos que tem a
receber e os vende, com desconto, a um fundo, que passa a receber os pagamentos
dos clientes. No geral, essas carteiras são bastante pulverizadas, o que em tese ajuda a
mitigar riscos.
A coordenadora da comissão de securitização da Anbima, Flavia Palacios, afirma que os
produtos de securitização vêm crescendo, à medida que o próprio mercado de capitais
ganha relevância. “Esses produtos têm funcionado como um complemento ao crédito
bancário, reforçando a base de crédito do país.”
O FIDC surgiu como alternativa ao financiamento privado, no qual grandes companhias
com redes de fornecedores davam crédito às empresas menores que compunham seu
ecossistema. “Mas dentro do balanço das empresas existe um limite para isso.” Com os
FIDCs, essa torneira se ampliou.
Com o amadurecimento do mercado, empresas de diferentes setores recorrem ao
FIDC como forma de financiamento, atingindo os recebíveis de prazos mais curtos,
como duplicatas, cartões de crédito e consignado, e também os de prazos mais longos –
financiamento de automóveis e imóveis. Comuns no varejo e nas cadeias industriais, os
fundos de recebíveis chegaram até mesmo ao mundo esportivo, com o São Paulo
Futebol Clube anunciado esse instrumento para ajudar no pagamento de dívidas.
O fundador e presidente da registradora Central de Recebíveis (Cerc), Fernando Fontes,
lembra que essa indústria passou por ciclos. Os primeiros FIDCs vieram de bancos
pequenos e médios vendendo o financiamento de consignado e de veículos. Anos
depois, o mercado se voltou a recebíveis comerciais, com grandes nomes âncoras
envolvidos, como a , com a securitização voltada às cadeias produtivas.
Depois disso, fintechs começaram a utilizar o produto para se alavancar. E, com a
abertura do mercado de cartões, o mercado deu um novo salto, com as adquirentes
como Cielo, PagSeguro e Stone montando estruturas com recebíveis, especialmente
vindos do varejo, de grandes redes como e .
Na Cerc, são feitos os registros de aproximadamente R$ 1 trilhão de recebíveis por ano.
Esse número tem crescido na casa de 20% por ano, segundo Fontes. O volume é maior
que o patrimônio líquido dos fundos porque em alguns papéis o giro pode ser muito
rápido – dias, no caso de desconto de duplicatas, ou alguns meses, nos recebíveis de
cartões de crédito.
O executivo afirma que o espaço de crescimento ainda é muito grande. Olhando, as
compras feitas com cartão de crédito no país, 64% do volume está securitizado ou dado
em garantias a bancos. O restante não está sendo usado pelo varejista. “Minha opinião
é que, com a maturidade do mercado, as grandes companhias já estão sobresservidas,
agora a grande fronteira será descer e fazer a inclusão das empresas médias”, diz.
Outro fator que pode levar a um crescimento será o maior uso do cartão de crédito,
conforme esse meio de pagamento avança.
Para a diretora da Anbima, esse mercado evoluiu nos últimos anos e ganhou camadas
de mais governança e transparência, com a própria Comissão de Valores Mobiliários
(CVM) ampliando seu escrutínio sobre a indústria. Os FIDCs têm, por exemplo, que
reportar a performance periódica da carteira, com os índices de atrasos, pré pagamentos e inadimplência, e qual a necessidade de provisão.
Neste ano, o regulador passou a permitir que cotas de FIDCs pudessem ser compradas
diretamente por pessoas físicas, que antes só tinham acesso dentro de fundos de
crédito, por exemplo.
A mudança do mercado ocorreu de forma mais rápida após uma crise, gerada pelo
FIDC Silverado, há quase uma década, acusado de fraude que desencadeou uma onda
de resgates dos fundos. O julgamento do caso ocorreu há duas semanas, com a
gestora e administradores multados em R$ 500 milhões. Outros problemas, que
tiveram repercussão, foram os de fundos ligados aos bancos Panamericano e Cruzeiro
do Sul, relacionados à duplicidade dos recebíveis. Esse foi outro fator que ajudou a
causar temor entre investidores.
Fontes, da Cerc, ressalta que episódios como esse não podem mais ter espaço para
ocorrer, já que o mercado sofreria um grande retrocesso. “Tem que se ter muita
diligência. Não se pode ter novos Silverados”, afirma.
Para o executivo, a obrigatoriedade de registros de todos os FIDCs vai ajudar na
fiscalização. Hoje, todos os novos fundos já precisam ser registrados, mas a CVM
estabeleceu novembro como prazo para que todo o estoque também seja registrado.
Fontes diz que, com o registro centralizado, o investidor terá também acesso a
informações mais granulares e poderá ainda comparar os diferentes fundos. Com isso,a tendência é que as pessoas físicas passem também a sentir mais conforto em olhar o
produto. “Prevemos mais transparência e mais liquidez para o mercado secundário de
FIDC”, diz.
Essa combinação, segundo ele, pode atrair também o estrangeiro, investidor que tem
potencial para mudar de patamar esse mercado no Brasil. “Nos próximos dois anos,
esse mercado vai passar por uma transformação enorme”, diz. Nessa evolução, mais
produtos devem chegar às plataformas e os fundos devem ter no futuro
acompanhamento de analistas, como aconteceu em outras indústrias, como
debêntures incentivadas e fundos imobiliários.
Na visão de Guilherme Spiller, sócio e responsável pela área de securitização da JGP
Crédito, a obrigatoriedade de registro ajudou no controle e no monitoramento e mitiga
potenciais riscos, como a cessão de recebíveis em duplicidade. “Isso também incentiva
o lançamento de mais produtos lastreados em recebíveis”, diz. “Se trata de mais uma
camada de proteção.”
A mensagem geral é que a indústria está madura. Maurício Bassi, sócio da
classificadora de risco de FIDCs Liberum Ratings, afirma que essa indústria passou pelo
último teste provando sua resiliência – a pandemia. “Foi um grande teste e os fundos
não tiveram problemas.”
Segundo ele, a evolução da governança dos fundos, com melhoria da regulação, faz
com hoje que os ativos tenham diversas camadas de proteção. “Os fundos possuem
gestor e administrador, tem a agência de classificação de risco, a Anbima, a CVM.” Para
ele, a obrigatoriedade de registro inviabiliza fraude.
Segundo Bassi, um mercado secundário líquido para os FIDCs, o que permitiria entrada
e saída dos investidores dos títulos a qualquer momento, seria um próximo passo para
o desenvolvimento da categoria, com potencial de atrair investidores ainda distantes
dos ativos. Ele destaca que a própria Liberum colocou na mesa formas de trazer
liquidez a esse mercado. “Com isso, teremos um novo salto de crescimento.”
As gestoras, no geral, têm se tornado especializadas em nichos para entender melhor o
funcionamento e a dinâmica em uma determinada cadeia, até mesmo para conseguir
dimensionar, por exemplo, como o aumento do desemprego pode afetar a
inadimplência dos fundos. No passado, eram identificados picos de atraso em
pagamentos em períodos de greve dos Correios, quando os boletos deixaram de ser
enviados.
Apesar de as pessoas físicas já terem acesso direto aos FIDCs, o volume hoje destinado
ao varejo ainda é residual, mas as projeções apontam para crescimento. Hoje, as
pessoas físicas já compram produtos securitizados, como os certificados de recebíveis
agrícolas e imobiliário (CRAs e CRIs, respectivamente), mas o fazem, no geral, com
atenção ao nome da empresa por trás – em geral, companhias conhecidas em seus
setores. Já no FIDC o crédito é pulverizado e de empresas muitas vezes menores e fora
do conhecimento do investidor de varejo.
Jonatas Ortega, chefe de gestão da CVPAR Business Capital, nota que a autorização
para o investimento nos FIDCs por pessoas físicas fez com que mais produtos fossem
colocados na prateleira pelas gestoras. Na visão dele, hoje muitos fundos estão
preparados para atender as regras impostas pela CVM para que o fundo esteja apto
para ser vendido às pessoas físicas, mas falta uma mudança em regulamento, com o
produto sendo voltado ao público em geral. Phylipe Corsini, chefe de distribuição da
gestora, afirma que esse processo será gradual, até porque os próprios FIDCs
precisarão se adequar para seus regulamentos estarem especificados para o varejo.
O acesso a pessoas físicas só será possível nos casos de FIDCs compostos por cotas
seniores, que possuem uma camada adicional de proteção e têm prioridade para
receber. Outra obrigação é que o regulamento estipule um cronograma para
amortização de cotas ou distribuição de rendimento. Nas cotas subordinadas, que
seguirão destinadas aos investidores institucionais, há uma parcela maior de risco de
inadimplência.
O fato é que nas gestoras a demanda tem crescido nas duas pontas. Na Multiplike,
gestora especializada em FIDCs, o número de empresas atendidas dobrou no último
ano, chegando a 650. O número de cotistas subiu na mesma proporção, indo de 150
para 300, fundamentalmente seguradoras, tesouraria de bancos, family offices e
fundos de fundos.
O presidente da Multiplike, Volnei Eyng, afirma que no início da indústria os FIDCs eram
uma alternativa para empresas que estavam sem acesso a crédito bancário, mas esse
cenário mudou. “A realidade hoje é que esse é um crédito que chega mais rápido, é
mais simples e barato. Essa indústria tem desbancarizado o crédito para pequena e
média empresa brasileira”, afirma.
Filipe Albert, responsável por originação e estruturação no Banco Fator, diz que neste
ano a demanda também decorreu do contexto dos fundos de crédito, que estão com
dificuldade de encontrar taxas atraentes no mercado, e muitos têm recorrido aos FIDCs
para buscar rentabilidade. “Estamos observando as assets migrando para esse tipo de
crédito”, diz.